quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Ternura

Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!



David Mourão Ferreira

terça-feira, 20 de novembro de 2007

«Meu Fruto de Morder, Todas as Horas» - excerto

(...)numa mancha de gasolina preparamos o fogo. um pássaro esvoaça sobre o mar e as últimas silhuetas da noite sentam-se na fogueira dos corpos.
plantas trepam pelas tábuas do humilde abrigo. O telhado de colmo protege-nos da humidade e do peso da noite.
observamos as flores nocturnas. aquelas que expandem pétalas e aromas ao entardecer. o fogo extingue-se. por dentro das areias ainda quentes despertam animais etéreos. colam-se às paredes. circulam pelo interior de nossos corpos acesos. falam-nos durante as horas perdidas da noite.
corpos ocos escondem-se nos silenciosos recantos do parque. ouvimos vozes e o ruído assustador das estrelas cadentes. crepitam a madeira e o canto das cigarras em cio.
fumamos.
torna-se nítida a geometria das borboletas em contraluz. as lâminas em câmara lenta. os objectos da viagem respiram. texturas pesos volume de corpos. espaço dum corpo navegando pelo interior doutro corpo. tocamos o olho enrugado do ânus. o sangue. a cremalheira dos sexos. as salivas as línguas os dedos duros e lentos perfurando a memória.
o sumo dum fruto coagula nas mãos. o suor dos corpos abandonados ao sal cintila. caminhamos há anos procurando os alimentos que precisamos e a sede. a cor que se sobrepõe a cada um destes dias.
não temos nome. dormimos no mesmo leito de algas sabiamente tecidas, somos a matéria envenenada da noite e o cuspo dos sexos. a água no incêndio nómada dos corpos. e a escrita(...)


Al Berto

sábado, 17 de novembro de 2007

Noturno

Tu pensarás em mim, por esta noite imensa
e erma, em que tudo é um frio e um silêncio profundo?
Tu pensarás em mim? Por esta noite, enfermo,
tendo os olhos em febre e a voz cheia de sustos,
eu penso em ti, no teu amor e na promessa
muda que o teu olhar me fez e que eu espero.

(Que dor de não saber se tu pensas em mim!)

Sob a tenda da noite estrelada de outono,
que eu contemplo através os cristais da janela,
junto ao manso tepor da lâmpada que escuta
— antiga confidente — os meus sonhos e as minhas
vigílias de tormento, eu penso em ti, divina.

(E tu talvez nem te recordes deste ausente!)

Penso em ti. Penso e evoco o teu vulto adorado.
Penso nas tuas mãos — um lis de cinco pétalas —
que, em vez de sangue, têm luar dentro das veias;
nos teus olhos, que são Noturnos de Chopin
agonizando à luz de uma tarde de sonho;
na tua voz, que lembra um beijo que se esfolha.
Penso.

(E nem sei se tu também pensas em mim!)

Talvez não. No tranquilo altar da tua alcova,
onde se extingue a luz de um velho candelabro
como uma lâmpada votiva, tu adormeces
sorrindo ao Anjo fiel que as tuas pálpebras fecha
para que tu não tenhas sonhos maus.

E eu penso
em ti, sem sono, a sós, angustiado e febril,
em ti, que nem eu sei se te lembras de mim...



Claude Debussy

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Vida e poesia

A lua projetava o seu perfil azul
Sobre os velhos arabescos das flores calmas
A pequena varanda era como o ninho futuro
E as ramadas escorriam gotas que não havia.
Na rua ignorada anjos brincavam de roda...

– Ninguém sabia, mas nós estávamos ali.

Só os perfumes teciam a renda da tristeza
Porque as corolas eram alegres como frutos
E uma inocente pintura brotava do desenho das cores
Eu me pus a sonhar o poema da hora.
E, talvez ao olhar meu rosto exasperado
Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga
Talvez ao pressentir na carne misteriosa
A germinação estranha do meu indizível apelo
Ouvi bruscamente a claridade do teu riso
Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada.
E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite
Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos
Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo
E se escorrer sobre os teus lábios como um suco
E marulhar entre os teus seios como uma onda
Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias
De que me tivesses possuído antes do amor.

Vinicius de Moraes

terça-feira, 6 de novembro de 2007

NÃO DEIXE O AMOR PASSAR

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento,houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d’água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente: O Amor.

Por isso, preste atenção nos sinais - não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: O AMOR.


Carlos Drummond de Andrade

domingo, 4 de novembro de 2007

Uma Paixão

Visita-me enquanto não
envelheço
toma estas palavras cheias de medo e
surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho
uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das
noites povoadas de peixes voadores
vem
ver-me
antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras
nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca
sulfurosa dos espelhos
vem
antes que desperte em
mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne a
paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas
a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono
das marítimas paisagens
estas feridas de barro e
quartzo
os olhos escancarados para a infindável
água
vem
com teu sabor de açúcar queimado em redor da
noite
sonhar perto do coração que não sabe como
tocar-te


Al Berto

sábado, 3 de novembro de 2007

A Dança

Chegaste de passos apertados
Os olhos embargados
Cheios de medos teus
Pediste que te levasse a mágoa
E que te tocasse a alma olhando para os meus

Apertei-te contra ao peito, num abraço perfeito

A rua como companhia
Às vezes escura e fria
Pura realidade
Ninguém olha p'ra ti
Com olhos de gente
Ate mesmo indiferente
A quem és de verdade
Esquece o teu mundo lá fora
É hora de ir dançar

Esta noite dança só p'ra mim
Que esta dança nunca tenha fim
São asas que me dás
Levam alto p'ra longe

Esqueçe o teu mundo lá fora
É hora de ir dançar

Esta noite dança só p'ra mim
Que esta dança nunca tenha fim
São asas que me dás
Levam alto

Esta noite dança só p'ra mim
Que esta dança nunca tenha fim
São asas que me dás
Levam alto p'ra longe
até de mim
até de mim


Polo Norte